CONSOLATA

Liliana Lagan* 5ur60

Consolata: era assim que a chamavam. Morava numa casa de dois andares, na rua principal da aldeia. No trreo, um local amplo com pipas de vinho, mesas, cadeiras e um depsito, nos fundos. Uma escada de madeira, bem a pino, conduzia ao andar de cima, onde ficavam a cozinha e dois quartos. Das janelas daqueles quartos podia-se ver, toda manh, o sol surgir dos montes da Sila, cobertos de bosques.

Nascera e crescera naquela aldeia. nica filha a sobreviver, tivera trs irmos de criao, que a me amamentara para no perder o leite deixado pelos filhos mortos.

Aos dezessete anos casaram-na com um carabiniere. Belo homem, bom partido. Pensaram ter-lhe dado boa vida. Viveria pensaram tranqilamente.

Mas o carabiniere desejava vida aventurosa, e sua primeira grande aventura a viveu l pelos idos de 1907, quando partiu para a Amrica, deixando a mulher com trs filhos pequenos.

Voltou depois de trs ou quatro anos. Com o dinheiro ganho na Amrica abriu uma bottega, naquela casa na rua principal da aldeia, um pequeno armazm onde se vendia de tudo um pouco: farinha, vinho, azeite, castanhas, po...

Trabalhavam muito, mas viviam com dignidade. Alm do armazm havia a olaria a carcara - que pertencia me da Consolata e onde os filhos, mal cresciam, iam ajudar e aprender o ofcio de fazer tijolos. E a famlia crescia: em 1920 a Consolata j tinha oito filhos, dos quais, dois gmeos.

Em 1922, outra grande aventura do ex-carabiniere levou-o de novo para longe, e desta vez para sempre. Viera a guerra e viera a gripe espanhola: uns haviam morrido na guerra e outros de espanhola. Muitas das contas, no armazm, ningum as havia podido pagar. Por outro lado, era forte o chamado da Amrica:
falava-se de uma terra de prata chamada Argentina, e outra chamada Brasil, de cho vermelho e rico, forrado de caf.

O ex-carabiniere decidiu partir para o Brasil e no foi sozinho: levou consigo o filho mais velho, de dezessete anos e que, como o pai, se chamava Consolato.

Consolata, quando o marido partiu, estava grvida da ltima filha, que nunca conheceria o pai. Ainda jovem e bela mulher, ficou com os filhos, a bottega e o nome Consolata, que herdava do marido. Desde ento, pareceu que todos na aldeia esqueceram que seu verdadeiro nome era Teresa.

Lutou bravamente, anos a fio, ela na bottega, os filhos na carcara. Na bottega os homens iam jogar cartas volta de duas ou trs mesas dispostas no local ao lado das pipas de vinho, debaixo dos olhares severos e vigilantes da Consolata.

Anos a fio, nunca uma rixa, na bottega; nunca um mexerico, na aldeia. Dizem que andava sempre com um chicote debaixo do avental e que batia nos filhos, mesmo grandes, se no obedecessem risca suas ordens.

E os filhos, mal sentiam as asas crescerem, levantavam vo. Aps o mais velho, foi a vez do segundo filho, Fortunato, que decidiu seguir a carreira que o pai abandonara e partiu carabiniere para Roma. No querendo mais servir me foi servir ptria, pensando, quem sabe, que seria mais livre alm, longe daqueles montes cobertos de bosques.

A mais velha das filhas, Giovannina, casou-se e partiu para Reggio Calbria. Antonietta, a segunda, casou-se com um vizinho que partia para a Austrlia. Ele embarcou logo e ela esperou ser chamada. Conseguiu embarcar no ltimo navio que saiu de Messina, dias antes do inicio da segunda guerra mundial. E por muito tempo no se teve notcias dela, por mais de quatro meses no se soube se havia chegado ou no. Na despedida, balanara forte o brao no ar, da ponte daquele navio, segurando no colo o filho pequeno, e parecera feliz.

Partir para a Austrlia ou para a Amrica tanto fazia, para aquela gente acostumada s privaes e s durezas de uma vida nada fcil. Parecia at que viviam espera de partir, e quando algum partia renovava-se a ansiedade de quem ficava, renovava-se o sentimento de abandono, como surda nostalgia de terra prometida da qual se sentiam excludos.

A guerra arrancou Consolata os trs filhos que ainda estavam com ela: os dois gmeos e o menor. Com o outro, que partiu de Roma, quatro fizeram a guerra.

Trs voltaram.

O prefeito e o marechal dos carabinieri foram pessoalmente dar Consolata a notcia da morte de Domenico, um dos gmeos, e os berros da Consolata encheram a aldeia e a aldeia inteira berrou com ela.

Terminada a guerra, dois filhos da Consolata voltaram para junto dela, mas por pouco tempo. Eram mais as casas que se fechavam do que as que se construam, naquela como nas aldeias vizinhas: os tijolos para pouco serviam. Por outro lado, comeava novamente o chamado da Amrica, o canto de sereia
daquela terra distante, que se fazia ouvir em cada carta que chegava, e muitos partiram da aldeia naqueles anos.

Partiram tambm os dois filhos da Consolata, um atrs do outro: Carmelo, o filho menor, para So Paulo, onde estava o irmo mais velho; Pasquale, o gmeo que sobrevivera, para Montevidu, onde estava o pai. E por fim Marietta, a filha mais nova, partiu para a Austrlia, onde estava a irm.

Consolata ficou na aldeia com a filha sca, sozinha ela tambm, porque seu marido, como o marido da me, como o marido de muitas outras mulheres da aldeia, partira para a Amrica e no voltara.

Fechada a bottega, Consolata vivia da penso que o Estado lhe dava pelo filho morto na guerra e de algum dinheiro que os filhos, de onde estavam, lhe enviavam vez ou outra.

Foi quando a conheci: ela tinha sessenta e seis anos, eu treze.

Em julho de 1952, meu pai decidiu fazer uma viagem Calbria para visitar sua me, e me levou com ele.

Partimos de Roma no trem da meia-noite. Alm da malinha com minhas roupas eu levava meu acordeo, em seu estojo ainda novo. Na estao Termini meu pai comprou dois gibis para mim, que comecei a ler logo que sentamos no compartimento. Meu pai deixou, porque queria que eu ficasse acordada at depois de Npoles: Voc precisa ver como linda Salerno noite!, havia dito ele. E eu fiquei acordada at que as ltimas tremulantes luzes de Salerno se desvanecessem diante de meus olhos pesados de sono.

Acordei em terra de Calbria no momento em que o trem costeava o mar to de perto que me parecia poder toc-lo com a mo.

Era verde o mar, na esplndida manh, de um verde que lembrava imensa esmeralda, desvanecendo-se em azul, alm; e a calma transparncia deixava ver, junto beira, os seixos branco-amarelados do fundo.

Um homem vestido de preto caminhava ao longo da praia puxando um burrico, preto ele tambm. Caminhavam lentamente, como se no precisassem ir a lugar algum e pareceu que nem perceberam o trem. E logo desapareceram de minha vista.

Descemos na estao de Paola. De l, seguimos viagem num vagozinho que comeou a subir por uma cremalheira em montanhas bravias, tragado de quando em quando por tneis escuros que o devolviam de improviso luz sobre pontes suspensas em precipcios, cujos fundos, cobertos de seixos, faziam adivinhar a fora das guas vivas das torrentes. volta, bosques e bosques. De castanheiras, de carvalhos.

Na cidade de Cosenza tomamos a litorina que nos levaria at Adami, a aldeia de meu pai, onde chegamos por volta de uma hora da tarde, debaixo de um sol a pino.

Creio que fomos os nicos a descer. Ningum nos esperava: talvez nem soubessem que amos chegar. Percorremos a p o trajeto entre a estao e a aldeia e chegamos casa de nonna, na rua principal, cansados e suados.

A porta estava aberta e entramos. Estava escuro dentro da casa, em contraste com a luz de onde provnhamos. Foi preciso algum tempo para enxergar a escada de madeira que conduzia ao andar de cima.

Uma voz, do alto da escada, nos fez entender que nonna estava l: talvez algum, vendo-nos chegar, a tivesse avisado. A escada era to a pino que quando chegamos no alto estvamos quase de joelhos diante dela, que nos esperava imvel.

Mau pai a abraou. Ela disse alguma coisa, depois disse alguma outra coisa dirigindo-se a mim - palavras perdidas, porque no as entendi - e nos conduziu at um quarto, onde havia uma enorme cama e um ba.

Escuro o quarto tambm, como escura a cozinha por onde havamos ado, com a fuligem grudada nas paredes e nas traves, de onde pendiam pedaos de toucinho defumado e lingias.

Escura nonna tambm, com sua roupa preta de amplas saias que lhe chegavam aos tornozelos e seu semblante srio, de traos duros como as montanhas que havamos atravessado. Parecia que nunca um sorriso havia sado daquela boca, nem uma lgrima daqueles olhos. Somente os cabelos, totalmente brancos, fixados numa trana enrolada na nuca, lhe emolduravam o rosto com uma aurola de claridade. Dela eu no sabia nada: sabia apenas que era a me de meu pai.

Enquanto falava, abriu a janela e a luz invadiu o quarto. Por um momento, sua figura escura no retngulo luminoso da janela me trouxe lembrana o homem com o burrico, vistos na claridade da manh.

Nonna nos ofereceu algo para comer, e logo a casa se encheu de gente: uma tia chamada sca, uma prima chamada Rosa, outros primos e primas e vizinhos. Falavam comigo e eu no entendia, perguntei a papai o que diziam e ele me disse que queriam que eu tocasse acordeo. Ento eu toquei. Acho que comecei com O carnaval de Veneza e La cumparsita, que eu sabia tocar bem. Toquei tambm o Intermezzo da Cavalleria Rusticana e Corengrato, e eles gostaram, mas queriam que eu tocasse umas canes calabresas que eu no conhecia, tentei tirar de ouvido enquanto eles as cantarolavam, mas no consegui, e ento parei de tocar.

tarde fomos at a Fontana Vecchia, a velha fonte de que sempre ouvira meu pai falar, e era realmente deliciosa aquela gua que brotava leve e fria das rochas, na encosta coberta de carvalhos.

eamos pela aldeia, que se preparava para a festa da Madonna do Carmine. Em todo canto havia um movimento festivo, de bandeirolas e barracas que se armavam, em todo canto palavras e sons cujo sentido me escapavam e me faziam sentir perdida, num mundo completamente estranho.

No dia seguinte, bem cedo, um eio pelas montanhas. Debaixo dos bosques, entre a relva, pequenas flores e morangos silvestres e, de quando em quando, riachos de guas claras que se podiam atravessar com um salto.

s margens de um desses riachos um pastor, quase um menino, sentava imvel. Meu pai me disse preste ateno! e lhe fez uma pergunta, que repetiu duas ou trs vezes sem obter resposta: o pastorzinho permanecia imvel, quase feito de pedra, ignorando-nos totalmente.

Mas meu pai insistiu em sua pergunta e afinal o menino-pastor moveu lentamente a cabea para o alto, parando-a depois bruscamente, ao mesmo tempo em que fazia estalar a lngua no plato.

- Ele disse que no, explicou meu pai traduzindo o gesto.

- O que voc perguntou?

- Se podamos beber esta gua.

Alguns anos mais tarde, aprendi na escola que existem pastores transumantes no Mediterrneo, que no vero conduzem seus rebanhos para as pastagens mais tenras das montanhas e vivem semanas a fio em silncio e em solido. Ns havamos interrompido aquele silncio, e aquela solido.

A Madonna do Carmine foi saudada com hinos, cantos, missa, procisso, jogos de tiro ao alvo e outras brincadeiras barulhentas.

Brinquedos, enfeites, imagens da Madonna eram vendidos nas barracas multicoloridas enfileiradas na praa em frente Igreja.

Em muitas delas pendiam os taralli, biscoitos doces feitos nos mais diversos formatos: bonecos, bichos, estrelas, semi-luas. Eu escolhi um tarallo em forma de boneco, e o levei comigo para Roma.

Mas sobreveio o tdio: aquele sentimento de estranheza aumentava a cada dia e me fazia sofrer. Tocava o acordeo para ar um pouco o tempo, tocava o Intermezzo, tocava La Cumparsita, tocava O Carnaval de Veneza para espantar a nostalgia de casa, mas ela aumentava, e eu sentia vontade de chorar.

Eu no podia falar com ningum porque no entendia o que as pessoas me diziam. S podia falar com meu pai, que muitas vezes estava ocupado em falar com sua me, e eu me sentia excluda daquele dilogo.

Todo dia, antes do amanhecer, escutava a voz de nonna que, no quarto ao lado, chamava: Rosa, Rosa!. Rosa respondia algo com voz de sono, se mexia na cama entre o estalido das folhas de milho do colcho, mas no levantava. E nonna recomeava: Rosa, Rosa!. E afinal Rosa se levantava, se vestia no escuro, agarrava a bacia com a roupa suja, acho que agarrava um pedao de po ando pela cozinha, e se encaminhava para o rio.

Mais tarde nonna vinha ao quarto onde dormamos, abria a janela e o sol invadia o aposento com ares de dono, quase com arrogncia. E ela, tambm com ares de quem se sabia dona, colocava-se em p ao lado da cama, firme em seus sapatos de homem, e comeava a falar, a falar sem parar, como um longo lamento, ou uma litania.

Meu pai a escutava atento, s vezes pesaroso, respondia-lhe vez ou outra, e eu olhava ora ela ora ele, sem entender uma s palavra, me mexia na cama e as folhas de milho estalavam num rudo seco, que encobria suas vozes. Um movimento irritado ondeava no rosto de nonna e ela me fixava com olhos duros e se calava, espera de que o rudo se aquietasse. Eu ento jazia imvel e um grande desejo de voltar para casa tomava conta de mim.

Logo no pude mais resistir e comecei a chorar. Meu pai tentou me convencer a ficar alguns dias mais e me mostrava tantas outras coisas, mas teve de ceder s minhas lgrimas e nossa estada na Calbria, que deveria ser de quinze dias, no ou de quatro ou cinco.

Voltamos para Roma. Nonna Consolata despediu-se de ns na porta de sua casa. Olhamos para trs duas ou trs vezes para acenar-lhe com a mo, enquanto nos dirigamos para a estao, acompanhados por um pequeno grupo de primos e primas.

Parecia que sua figura escura, imvel diante daquela casa, nunca se separaria dela, como se fossem uma coisa s. Pensei que nunca mais a veria, e no fiquei triste com isso.

Mas, mal se aram trs anos, a revi na estao de Npoles, s vsperas de nosso embarque para o Brasil. Logo a reconheci, na estao, debruada na janela do trem, com seu vestido preto e os cabelos em desordem pela viagem.

Olhou-me com seus olhos duros, quando a cumprimentei. No sorriu, mas disse algo.

- O que ela disse? perguntei a meu pai.

- Que voc cresceu muito, nesses trs anos.

Depois ela falou dirigindo-se a meu pai, e pela primeira vez consegui entender o que ela disse:

- E se ela chorar, na Amrica?- disse nonna Consolata.

Acabamos por morar juntas, em So Paulo, na casa de meu tio Consolato, na rua Castro Alves. Era uma casa com um quintal muito grande, quase uma chcara, na Aclimao, com rvores de frutas de nomes e gostos estranhos, goiabeiras, jabuticabeiras, mangueiras, entre canteiros transbordantes de samambaias.

Naquele quintal meu tio construra trs quartos, com banheiro e cozinha, para nos receber. Ele, o filho mais velho da Consolata, que nunca mais voltara sua aldeia natal, estava feliz agora por ter reunido sua volta parte de sua famlia: o irmo mais novo,

Carmelo, que ainda morava com ele, e agora a me e seu outro irmo, Fortunato, com toda a famlia.

V como bom agora, mamma dizia ele, satisfeito.

- Mas os outros esto longe, queixava-se a Consolata.

- Mas voc, mamma, nunca est contente, diziam-lhe ento os filhos, que aps tentar em vo convenc-la de que agora tinha tudo para ser feliz, se punham a jogar cartas ou bochas, na cancha construda sombra daquelas rvores, fingindo com isso, quem sabe, estar de volta aldeia natal.

Mas a Consolata no estava feliz. Com exceo dos filhos, no entendia e no era entendida, e assim no podia falar com ningum. ava seus dias calada, mantendo as mos continuamente ocupadas com trics e crochs. S falava noite, quando os filhos, chegando do trabalho, iam conversar com ela, ouvir um pouco suas queixas.

Muitas vezes, tarde, sentava numa cadeira no jardim, com seus crochs, e era bonito ver como saam de suas mos lindos rendilhados, que formavam centros de mesas, golas para blusas e outros enfeites que as netas brasileiras lhe pediam. De vez em quando, apoiava o trabalho na cadeira e caminhava um pouco entre os canteiros de samambaias, ava em frente janela do meu quarto, via-me debruada em cima dos livros, dizia alguma coisa como sempre estudando, voc?, e seguia adiante.

Nas manhs ensolaradas, gostava de tomar sol na rua, em frente a casa. No adiantava dizer-lhe que poderia tomar sol no jardim, e que aquela no era a rua da sua aldeia. Ela dizia que o sol da rua era melhor e continuava a sair: postava-se na calada em frente e ficava imvel, com os olhos fechados, o rosto voltado para o sol. Causava uma impresso estranha, aquela sua figura escura, imvel, naquela rua: parecia um personagem arrancado de uma histria e jogado em outra e que buscasse com desespero o seu lugar. Faltava, quela figura escura, o fundo daquela casa antiga e a moldura daqueles montes cobertos de bosques, na luminosidade daquela luz longnqua.

Sentiu-se melhor quando, um ano depois, chegou ao Brasil Maria Teresa, a neta calabresa que vivera com ela at os dezenove anos. Maria Teresa tambm veio morar na Castro Alves, e com ela nonna podia falar vontade de fatos e histrias da aldeia, que eram memria comum s duas. Mas Maria Teresa logo comeou a trabalhar o dia inteiro durante a semana, voltava s noite, e tinha mil coisas para cuidar, no tinha muito tempo para conversar.

Nonna Consolata continuou com seu sol pela manh, seus crochs tarde, suas queixas noite. Adoeceu de repente: uma hemorragia cerebral a lanou num abismo misterioso, no qual se debatia sem cessar e de onde nos chegavam seus berros, seus lamentos, seu riso infernal e seu pranto desconsolado.

Vi o rosto de meu pai cobrir-se de uma sombra de tristeza:

- Desta vez, - disse mamma no resiste.

Mas a Consolata resistiu. Ficou naquele inferno por alguns dias, depois se acalmou e aos poucos comeou a voltar: comeou a reconhecer os vultos sua volta, comeou a balbuciar-lhes os nomes, recomeou a falar. Voltou a memria, voltaram as lembranas. S no voltaram o brao e a perna direita, e no saiu mais da cama: viveu assim por mais de vinte anos.

Cortaram-lhe os cabelos para facilitar a higiene, e ela chorou quando se viu separada da longa trana, que usara a vida toda.

Colocaram sua cama perto da janela, para que pudesse tomar um pouco de sol e ver o jardim, cercando-a com tudo que poderia ser-lhe til e ao alcance do brao esquerdo: uns guardanapos, uns lenos, um rdio, o livro de preces que trouxera da Itlia, uma moringa com gua e um copo.

O rdio ficava mudo a maior parte do dia, mas s seis da tarde ela o ligava e acompanhava o rosrio transmitido diariamente por uma estao: Ave Maria cheia de graa..., dizia uma voz feminina; Santa Maria, me de Deus..., respondiam em coro outras vozes femininas, s quais se juntava a de nonna, em palavras incompreensveis, apenas murmuradas, ao mesmo tempo em que as contas do rosrio corriam uma a uma em sua mo esquerda. Est rezando em portugus, nonna? perguntei um dia. No respondeu ela - rezo como sempre rezei, mas sei que elas dizem o mesmo que eu.

noite, ao voltarem do trabalho, os filhos se revezavam para fazer-lhe um pouco de companhia, ouvindo suas queixas redobradas e tentando em vo consol-la. Maria Teresa ou a dedicar-lhe todos seus fins de semana, at o dia em que se casou e foi morar em Pinheiros.

Ns tambm nos mudamos da Castro Alves. Fomos morar na Rua Nilo, no muito distante dali, e aps um tempo nonna Consolata foi morar com o filho Carmelo, que nesse nterim se casara com Andriana, a moa que conhecera na Grcia, durante a Segunda Guerra Mundial. E assim nonna Consolata, que j conseguia se entender com a nora portuguesa, sentiu-se de novo perdida com a nova nora, e teve de aprender o significado de algumas palavras gregas.

Muitas vezes eu ia visit-la com meu pai. Eu agora entendia tudo aquilo de que falavam: no Brasil, alm do portugus, eu havia aprendido tambm o calabrs.

Ele sentava ao lado da cama e ficava escutando, como sempre. Nonna Consolata falava e meu pai escutava atento, s vezes pesaroso, adivinhando, quem sabe, que em breve ele tambm estaria entre as lembranas de sua me.

No dia de sua morte, j vestido com seu terno escuro, mas ainda deitado na cama, quando eu pensava estar vivendo a maior dor do mundo, vi nonna Consolata aparecer na soleira da porta, carregada pelos seus dois outros filhos, com seu vestido preto e seus cabelos mais brancos que nunca. Apareceu na soleira e um grito medonho saiu de seu peito: Figlio mio! gritou, e eu obscuramente senti que estava diante de uma dor infinitamente maior que a minha, uma dor que no ei e que me fez sair correndo do quarto, para no ver.

Depois, quando podia, eu ia visit-la, sozinha.

- Senta aqui, - dizia-me ela, ajeitando um lugar em sua cama, com a mo esquerda.

- Veja... dizia depois, mostrando-me a mo que jazia imvel em seu regao. E olhando uma mancha de umidade na parede, no quartinho de fundos em que ficava, na casa de vila da Rua Apeninos, continuava:

- Nunca bate sol aqui. E eu tinha tanto sol em minha casa! Voc se lembra? Voc esteve l uma vez. Voc ainda era uma menina, lembra? Mas voc no gostou. Voc chorou tanto, tanto...

Eu olhava longamente seu rosto. Nele buscava o rosto de meu pai. Ela tambm me olhava longamente e dizia:

- Voc se parece muito com seu pai.

E comeava a me falar dele, e era como se novamente o fizesse nascer diante de mim e novamente o amamentasse, e me mostrava seu seio branco, ainda bonito. E em pouco tempo ele estava ali, garoto, a brincar entre a me e a filha.

- Era um pequeno peralta, seu pai, contava nonna . Aos quatro anos, quando quebrou a perna, ameaou se jogar da escada se no o deixasse sair...

Premida pela necessidade, havia vivido a vida toda sem nela poder pensar muito. Vivera, apenas. Agora tinha o tempo de saborear, de sua vida, todos os sabores. Gostava de contar. Tinha uma memria fantstica e falava de si, dos filhos, da aldeia.

- Consolato, seu nonno, partiu para a Amrica em 1907. Ficou trs ou quatro anos l, e voltou. Depois partiu de novo, dessa vez para sempre, e levou embora tambm Consolato, seu tio... Foi em 1922. Naquele ano partiu muita gente da aldeia. Partiram... e fechava os olhos num esforo de memria, e dizia nomes e sobrenomes dos que haviam deixado Adami, e contava as casas que naquele ano se haviam fechado na aldeia, as contava uma a uma, de uma ponta a outra da rua principal...

Nonna Gemma, na minha infncia, contara-me fbulas e falara de futuro e de esperana. Nonna Teresa, agora, contava histrias de vidas vividas, e falava de ado e de dor.

Com a mo esquerda abria a gaveta do criado-mudo ao lado da cama, pegava seu livro de preces, em cujas pginas guardava as coisas mais preciosas: a foto de Domenico, a foto de meu pai - os dois em uniforme militar -, as fotos dos filhos e netos distantes, a ltima carta que chegara da Austrlia, a outra vinda de Montevidu.

- Leia para mim! dizia.

Eu lia. E ela escutava, atenta s palavras que j sabia, porque outros j lhe haviam lido a carta, mas ela queria se certificar de que nada lhe havia sido escondido.

- Pasquale est mal... dizia. No ele que escreve. a mulher dele. a terceira carta que chega com a letra dela. Acho que ele j morreu, e no querem me dizer...

E, apertando contra o peito as fotos de Domenico e de meu pai, chorava: nonna Consolata chorava um longo, desconsolado pranto.

Com o tempo aprendeu a se levantar da cama e, apoiando-se numa cadeira que fazia escorregar empurrando-a sua frente com a mo esquerda, conseguia chegar at o banheiro. Todos se afastavam para ela ar, e ela ava sorrindo, feliz daquela sua proeza que lhe permitira reconquistar um pouco de sua autonomia.

Ficou feliz quando eu lhe disse que iria para a Calbria, em minha primeira viagem de retorno Itlia. Iria em julho, eu lhe disse, para ver de novo a festa da Madonna do Carmine, e levar meus filhos para a terra do av que no haviam conhecido, e verem a casa onde ele nascera. Ela ficou feliz, e disse: Voc me traz um pouco de gua da Fontana Vecchia? S um pouquinho, uma garrafinha.... Eu prometi e ela me olhou sorrindo, mas de seus olhos fixos em mim vi brotarem lgrimas de indizvel nostalgia, que rolaram pelo seu rosto enrugado como o tronco de um velho carvalho: Voc vai rever a minha casa. Eu nunca mais a verei, nunca mais... disse, enquanto os soluos lhe sacudiam os ombros. Eu no disse nada, mas pela primeira vez a abracei forte, beijei aqueles cabelos brancos e chorei com ela.

Quando voltei da Itlia no a encontrei mais na casa da Rua Apeninos. Numa de suas idas at o banheiro, empurrando a cadeira, cara no meio da sala, e quebrara a bacia. E, aps o hospital, a haviam internado numa clnica de repouso para idosos, na Freguesia do , no longe da casa onde morava agora sua neta calabresa, a Maria Teresa.

Tentaram convenc-la de que tinha de novo tudo para ser feliz: um lindo jardim, um lindo quartinho, um lindo sol. Mas ela no era feliz: sentia-se de novo sozinha, longe, perdida. Maria Teresa a visitava todos os dias e cuidava dela com desvelo, e, muitas vezes, ia tambm a nora grega, que cuidara dela durante tantos anos. No comeo, todos os outros a visitavam nos fins de semana, mas aos poucos as visitas comearam a rarear.

Por seu lado, ela tambm comeou a ir embora: creio que, naquele tempo, vivia a maior parte do tempo imersa em seu ado:

- Abre esse armrio e me pega uma garrafa de vinho, - disse-me certo dia em que eu a visitava.

- Mas no tem vinho aqui, nonna! respondi.

- Tem sim! Eu mesma escondi, ontem noite. Escondi tambm trigo, para quando eles voltarem da guerra disse, e sua voz perdera o tom queixoso, era voz quase de mando.

A Consolata voltara sua aldeia, e, como dona, reabrira as janelas daquela sua casa antiga, deixando entrar o sol, contrapondo a ele sua figura escura.

Outra vez, baixando a voz num tom de cumplicidade, me disse:

- Voc me traz um pouquinho de whisky?

- Whisky, nonna? perguntei num sobressalto Mas voc gosta?

- No sei, respondeu simplesmente mas todos dizem que bom. Seu nonno tambm dizia isso, quando voltou da Amrica.

No esta Amrica, a outra, a Amrica de verdade. Ele dizia que l se bebia whisky, e que era bom. E eu s quero saber que gosto tem...

Falei com a enfermeira, mas ela me disse que nonna no podia tomar bebidas alcolicas. No levei o whisky, e me arrependi.

Morreu alguns dias depois: a Consolata, que tanto sabores conhecera da vida, morreu sem saber o gosto do whisky.


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A AUTORA

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